segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Uma Xícara de chá Cap. VIII

A eternidade de degraus na escada torta e subia sem pressa. Nos dedos um bocado de esperança escorrendo com as gotas do suor quente. Nos pés calos de carne viva e os sonhos como almofadas abstratas.
Estancado o tempo, corria dentro de si o infinito afoito inconsciente do não fim. De várias direções um cem número de setas contradizendo, confundindo, embaralhando os passos.
Inspiração contida, expiração abrupta, o resto de pulmão comprimindo as tentativas de sentir o ar colorido e denso que se estabelecia.
Feito bolhas que expandem e estouram seguidas umas das outras idênticas e singulares, via existências repletas do não visível.
Os olhos agudos fixando o oco dos degraus irracionais.
De cada seis passos inconscientes, a cabeça pendia fazendo esquecer a verdade passada. De seis passos perdidos o esforço obtido no esquecimento. Seis passos acima ou abaixo, a certeza do abandono.
Relevos indiferente, cada lance acusando sua constância estática, evidenciando a inutilidade do movimento.
De degraus incontáveis, rolaram os restos inalcançáveis de barreiras concretas.
Sete ritmos silenciaram a luz sonora invasora de espaços ocultos, pedaços refletores de imagens e sensações invisíveis.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Uma Xícara de Chá- Cap. III

Uma chaga roxa no coração fictício. Uma tentativa de sentido que não poderia sentir. Segurou firme com as mãos uns segundos do ponteiro do relógio abstrato tictaqueando na mente. Retrocedeu alguma eternidade do tempo que já não. Compreensão súbita da verdade. De olhos imaginários, esferas ocas, uma pintura cubista. Olhos pintados no painel daquele campo extenso e repleto vazio.
Da chaga roxa, o líquido que escorria também roxo com brilho fluorescente ia gotejando pelos órgãos infectando e iluminado, pulmões respiração, bexiga e excrementos, saco escrotal e útero. Em pouco tempo o mundo que ficou de cabeça pra baixo criando noite, infringiu lei de gravidade e o líquido subiu pela garganta indo atingir o cérebro indefeso. A mente receptora cessou no momento toda palavra intrusa e aceitou a sensação úmida do novo.
Estancadas as tentativas de ação, mãos abertas despojando do que não lhe era.
Da cabeça suspensa por fios de consciencia, imagens abstratas desprendendo e desbotando no grande vácuo onde não havia matéria possibilitando firmamento.
Sentiu um cheiro de si que vinha dos poros transpirantes. O cheiro também foi se integrar na paisagem vazia que era o externo.
Cessada respiração naquele ambiente de coisas e pedaços, evacuou sem pressa ou sofrimento a continuação dos suspiros interrompidos. Integrou-se do roxo de todas as cores, tingindo as mãos que secavam em abanos a espera. Derramou por todo resto de tempo as gotas que se decompunham, derretendo languidamente pedaços de matéria.
Todo espaço absorvido, absorvida a verdade. Integrados universos, essência e existência. Das tentativas corrompidas, começos fragmentados, inconsciência. Liberdade permissão.

terça-feira, 4 de agosto de 2009

Uma Xícara de chá - Cap. II

Saiu correndo dos barulhos de tiro que entraram na cabeça. Uns vinte ou mil passos que não pôde contar tamanha pressa. Parou pra respirar, sentiu dentro dos pulmões um ar que cortava quando entrava, remendava quando saia. Deixou o corpo escorregar no chão sem pressa, como se derretesse indo fundir no asfalto quente.
Esperava. Com os olhos que enxergavam sem ver de fato, um caminho grande desprovido de pessoas. Uma rua larga e seu corpo jogado bem no meio. Sem carros sem gente, apenas o sol de meio-dia insistindo calor.
Esperava...
Contou alguns segundos enquanto se lembrava do barulho de tiros dos quais desconhecia a origem. Tentou ir mais atrás com a memória, buscando o que poderia ter. Mas uma sensação de mancha preta era o que havia antes da memória do som de tiros. Todo resto não era, como vazio mesmo. Apenas sabia que esperava.
Tentou sentir o desespero propício da situação em que se encontrava, sem memória, todo o resto de identidade apagado, era caso de desespero, mas não, não sentiu. No lugar, um conforto estranho da certeza de quem espera mesmo já inconsciente do alvo concreto da espera.
Junto com a memória perdida, a sensação de um peso de planeta que desprendia das costas. O único incômodo, a certeza de que tal estado da mente deveria incomodar. E não.
Quis sair do plano abstrato do pensamento, fugiu para o limite do corpo. Primeiro os olhos que agora viam de fato. O asfalto, todo o concreto em forma de habitações, os postes sustentando os fios, desde quando tantos fios?, também na paisagem, painéis gigantes com imagens de rostos e corpos humanos, e roupas e calçados e acessórios, tudo tão harmônico, parecia tudo feito da mesma matéria, as pessoas e os objetos, feitos de papel grosso enrugado. Foi a impressão que teve. Subindo os olhos, sentiu a ausência de aves e do som das aves, apenas aquele céu estranhamente cor de chumbo com pitadas vermelhas que poderia ser do resto de sol. Feito duas esferas paralisadas, os olhos ficaram grudados na visão do céu, esperando também. Da espera veio a conseqüência, o calor de meio dia transformou-se (...)