sexta-feira, 26 de março de 2010

Do Ato

Principiou a escrever com a mão trêmula as palavras que vinham descompostas, talvez desprovidas de razão. Enxergava as palavras nubladas pelas lágrimas que iam borrando a tinta da caneta sobre o papel. Após escrever interruptamente durante um quarto de hora, descansou a mão sobre a boca, cerrando, como se fizesse calar.
Os olhos inchados - a vista ainda turva começou a caminhar sobre as letras que se compunham em palavras, tantas palavras engolidas sem mastigar.
Cada letra soava como um soluço abafado. Enquanto lia, a dor que outrora sentia esvaziava aquele barulho que lhe roubava a nitidez dos pensamentos.
Continuou lendo, esvaziando, esvaziando, até a última frase. Sentiu no oco que se fizera, uma bambeza na cabeça, no coração um vácuo desconhecido.
A vista, agora tonta e cansada, não podia mais ler, rejeitava aquelas palavras explícitas que lhe roubava a ruidosa inflamação de emoções.
Num impulso, fez do papel traiçoeiro um milhão de pedacinhos, as palavras agora, pedaços de letras, restos fragmentados. Na esperança de retornar ao impulso, ingeriu cada pedaço do papel salgado de lágrimas, que desmanchavam muito lentamente na boca, tingindo a língua e os dentes. Devorá-los-ia, até que não restasse um pingo, até que sofresse a overdose verbal.