sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Ontem


A música repetia involuntariamente na sua cabeça na forma de pensamento, quando percebera que o aparelho de som já havia sido desligado. Ele próprio o desligara. Permitiu que a música continuasse, desta vez com a própria voz, baixa e rouca, a melodia doce de rimas fáceis. A garganta estava seca. Levou o copo à boca e o restante da bebida já quase morna aumentou a sensação de sede. Buscou a garrafa sobre a mesa, uísque. Era uísque que bebera do copo agora a pouco? Não se lembrara de ter comprado aquela garrafa. Observou o rótulo, a marca desconhecida trouxe-lhe o presságio da enxaqueca que sentiria pela manhã. Nem no seu aniversário podia tomar uísque de qualidade, trinta e dois anos e lhe traziam uma garrafa de uísque vagabundo.
Ia perguntar, quem era o filho da puta, mas interrompeu o gesto com as mãos quando percebeu que não havia ninguém na sala. O barulho do portão se fechando e o som estridente de uma gargalhada anunciaram a partida dos últimos convidados. Franziu o cenho e em seguida deu de ombros , qual o problema em ficar sozinho quando há bebida na geladeira? Aliás, melhor mesmo estar sozinho, durante toda a festa esteve afundado em si, aprisionado no fluxo incessante de pensamentos tão incontroláveis que mal se dava conta do que ocorria ao redor. Lembrou-se vagamente da amiga, qual era o nome? Márcia. Houve uma época em que não se cansava de admirar os lábios e os seios de Márcia. Nessa ordem, primeiro os lábios, depois os seios, depois os lábios... Lembrou-se de Márcia se aproximando, mas não se lembrava onde ele próprio estava que não pôde sentir a excitação de antes... Fragmentos das frases de Márcia sobre a educação pública do país, sobre a organização partidária que liderava... o que mais? Mas que porre Marcinha! Política? Uma boca assim tão linda poderia ser bem melhor ocupada... Pensara nisso ou realmente havia dito à ela?
Márcia e a política, Geraldo e os conflitos religiosos, deu pra virar budista agora o Geraldão... e o Marcos, qual que era a dele com aquela história ambientalista, os índios no Xingu? Como se ele se importasse. .. Uns hipócritas! Como se nenhum deles soubesse que no final das contas é o dinheiro que manda. Ideologia o caralho! Quis gritar, o caralho, sacam? Em seguida sorriu, sentiu-se superior por ter plena consciência disso, nunca se deixara iludir, chamado de egoísta, sempre revidava, e no final das contas quem não é? Atirem a primeira pedra... como ficava enfurecido com a ingenuidade, pseudo-ingenuidade dos colegas. O copo na mão sentira sua raiva, sem que percebesse, a tensão que tomava seu corpo com esses pensamento trincou o copo fazendo com que caísse e espatifasse sobre o tapete. Abaixou para buscar os cacos, hesitou, voltou a levantar... Não precisava fazer isso naquele momento, amanhã, mais tarde, quando feito fênix ressurgisse das cinzas com uma aguda dor de cabeça e o estômago ulcerado.
Quando se levantava, quase cambaleando, de relance viu no porta-retrato, meio escondido por trás do troféu de Jiu-Jítsu, o retrato da mãe. Estava sorrindo. Por um segundo perguntou-se quem seria aquele broto sorridente que o olhava. Há muito tempo não via fotos da mãe, um rosto rechonchudo, jovem ainda, a foto deveria ser do pós parto, pois o cenário branco evidenciava um quarto de hospital. Ou seria no começo da doença, quando ainda era capaz de sorrir? Por um segundo, enquanto se aprofundava naqueles olhos pretos da mãe, sentiu-se lúcido. Um sentimento sem forma, já desbotado de tão antigo, surgiu do estômago como uma ânsia indesejado. Num reflexo rejeitou-o, dando lugar a uma tristeza de entrega. Não mais a revolta, não mais a ira que vinha sentindo inconscientemente durante tantos anos, desde... desde quando? , e que crescia gradativamente. Essa ira que fazia com que ele buscasse mais e mais o sucesso, a certeza de ser um homem independente, capaz, potente... No lugar, aquela tristeza calma, que por alguns momentos silenciou sua mente e pode sentir cada momento das suas ações. Quando deu um passo em direção a estante para pegar o retrato, sentiu uma lasca grande de vidro perfurar seu pé e em seguida a quentura do sangue que escorria grosso. Sentiu apenas, como se não doesse e permitiu que o grito saísse quase rompendo sua garganta e os próprios tímpanos.
Com o porta retrato na mão caiu ao chão, em meio ao sangue, as lágrimas e um tremor que invadira todo o corpo, encolheu-se em posição fetal, e sentindo um gosto salgado na boca permaneceu chorando, sentindo o conforto das lágrimas, o alívio dos soluços, sentindo todo o corpo sendo perfurado pelos cacos de vidro, feito um incômodo necessário, até abandonar-se na nostalgia da infância fácil e simples, o cheiro do perfume da mãe, parecia tão singelo e podia senti-lo agora, conseguia ouvir a voz da mãe cantando aquelas cantigas infantis, eram tantas e se misturavam com antigas músicas de carnaval, e ainda sentia sua mão quente alisando o pé frio, enquanto o embalava. Permaneceu assim até se esquecer que era quase dia.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011


No meio de um ciclone que fecha as portas com estrondo e escancara as janelas. Há uma porção de restos sobrevoando a casa, e uma tentativa inútil de alcançá-los com as mãos até descobrir que são apenas restos.
Os alicerces vibram ameaçando romper a frágil dependência com o chão. E o chão permanece, inerte, indiferente aos restos que já se perderam no firmamento.
E o chão permanece imutável na sua verdade muda.